
E qual seria o problema de se utilizar tais expressões, tão difundidas e presentes no senso comum? Todas elas são heranças implícitas do capacitismo. Este nome, não muito conhecido, designa a crença social de que o indivíduo com deficiência é incompleto, diferente e menos apto para executar qualquer função ou gerir a própria vida. Em outras palavras, capacitismo é um tipo de preconceito social, assim como o machismo, o racismo e a homofobia.
Mas, espera aí! Como eu posso estar falando que esse tipo de conteúdo que enaltece a pessoa com deficiência se baseia em crenças preconceituosas? Bem, vejamos. O que é enaltecer algo ou alguém? Significa elevá-lo, glorificá-lo. Em outras palavras, é dizer que a sua existência é sublime, fora do comum. É o oposto de encarar algo ou alguém com naturalidade, em uma posição de igual para igual.
E de que forma, este discurso de enaltecimento da pessoa com deficiência pode prejudicar sua luta e sua imagem perante a sociedade? Ao glorificar acontecimentos de sua vida, que seriam comuns a qualquer outra pessoa sem deficiência, está implícito aí no discurso a extraordinariedade do caso retratado: o indivíduo com deficiência então seria diferente por conseguir estudar/trabalhar/casar-se? Tais ações, ou ainda outras não citadas, seriam tão incomuns ou impossíveis para alguém só por causa de sua deficiência.
A pessoa então acaba recebendo o status de “herói”, de “exemplo de superação”, apenas por realizar ações que a sociedade julga serem improváveis para quem tem uma deficiência. Ora, aí está exatamente a manifestação do capacitismo! Por que precisamos de uma compensação, de adjetivos qualificativos? Não podemos simplesmente sermos vistos como qualquer outro ser humano, e nossa deficiência ser considerada como apenas mais uma de nossas características?
É certo que podemos enfrentar muito mais dificuldades do que as outras pessoas sem deficiências para alcançar algum objetivo, devido à falta generalizada de acessibilidade em nossa sociedade. Nosso caminho pode ser mais árduo e penoso, ao termos que arcar com os custos e impedimentos impostos pelas interações entre nossas deficiências e as barreiras físicas, comunicacionais, atitudinais e outras presentes no mundo em que vivemos.
Mas isto, por si só, não deveria ser motivo para sermos taxados de “heróis” ou “exemplos de superação”. Quantas outros indivíduos também não enfrentam barreiras diversas, como as econômicas, sociais, psicológicas, ou seja do tipo que for? Deste jeito, o mundo não estaria repleto de pessoas, e sim de seres idealizados e perfeitos.
E a heroicidade cobra o seu preço. Este rótulo cria um muro, uma divisão que separa socialmente o indivíduo referido das demais pessoas. É legal louvar um “herói”, mas e quanto a interagir com ele, torná-lo parte de seu dia a dia, do seu círculo de amizades? O mais comum é colocar tal “herói” em um pedestal, deixá-lo inalcançável, mas, ao mesmo tempo, cobrar implicitamente dele uma perfeição em suas ações. Ou seja, esquece-se frequentemente do componente humano, de que aquela pessoa que idolatramos também é gente como a gente, com os mesmos direitos e deveres, virtudes e vícios.

Não! A deficiência continua conosco, é uma de nossas características que a ciência médica ainda não nos permite mudar. Por isso, lidamos com ela dia após dia, procurando soluções de resiliência para os desafios que surgem em nossos caminhos. Mas, aliás, creio que esta seja uma das definições da palavra viver, não é mesmo? Enfrentar as adversidades da existência, sejam elas do tipo que for.
Então, como podemos evitar todos estes equívocos que acompanham os discursos de superação? Simples: devemos enxergar a pessoa, o ser humano, em primeiro lugar. Não criar rótulos baseados apenas em uma de suas características. Podemos (e devemos!) falar sobre deficiências, mas com o objetivo de naturalizá-las, mostrar que elas não são algo extraordinário. No lugar da exaltação e da busca por “heróis” cotidianos, que tal nos preocuparmos mais com a viabilização da acessibilidade e da igualdade de oportunidades a todos.
Por Ana Raquel Périco Mangili.
Jornalista, autora do Blog Dyskinesis e colaboradora do Distonia Saúde.