Após anos de dor e diagnósticos errados, Maria Nilde Soares descobriu que tinha distúrbio de movimento pouco conhecido e agora luta por visibilidade
Gabriela Maraccini, da CNN
“Maria Nilde Soares demorou quatro anos para receber o diagnóstico correto de distonia e, nesse meio tempo, perdeu 87% dos movimentos do corpo.”
Aos 30 anos, Maria Nilde Soares vivia uma vida tranquila e estável. Tinha casa própria e estabilidade no emprego como consultora comercial. No entanto, sua vida começou a tomar um rumo diferente quando passou a ter espasmos e contrações nos músculos do rosto.
“Meu olho esquerdo começou a piscar sozinho e, depois, minha boca se contraía. Até que minha cabeça passou a se mover involuntariamente para o lado”, conta Nilde à CNN. “Todos [os médicos] queriam me internar em uma clínica porque afirmavam que meu problema era de cunho psicológico, e não neurológico”, completa.
Os tratamentos propostos, voltados à saúde mental saúde mental, não surtiram efeito e os sintomas pioraram e se tornaram tão incapacitantes que Nilde tentou o suicídio duas vezes.
“Acordar e dormir todos os dias com dor afeta o seu psicológico. Não ter controle do próprio corpo afeta o seu psicológico. Mas o problema não era psicológico, era neurológico”, reitera.
Com dor incapacitante, Nilde chegou a ser afastada do seu emprego, o que também trouxe consequências para seu bem-estar mental. “O trabalho com vendas tem uma cobrança muito grande, e a minha produção caiu, obviamente. Eu fui demitida por isso”, conta.
Foram mais de quatro anos e sete médicos consultados até que Nilde ouvisse a palavra “distonia” pela primeira vez. Esse é o nome dado a um conjunto de distúrbios que levam a contrações musculares involuntárias que causam posturas anormais, espasmos ou movimentos repetitivos.
O que é distonia?
A distonia é um transtorno de movimento caracterizado por contrações musculares involuntárias, podendo ser focalizada (acomete apenas uma região do corpo, como mãos, pescoço, pés ou olhos) ou generalizada (acomete várias regiões corporais).
“Essa contratura involuntária dos músculos gera uma postura anormal e muita incapacidade, podendo acontecer durante o repouso ou vir associada a algum movimento voluntário”, explica Sara Casagrande, neurologista especialista em distúrbios do movimento, à CNN.
Segundo o Manual Manual MSD,, a distonia resulta de hiperatividade em diversas áreas do cérebro, como os gânglios basais (que ajudam a iniciar ou suavizar os movimentos voluntários), tálamo (que organiza mensagens sobre os movimentos musculares), cerebelo (que coordena os movimentos do corpo) e córtex cerebral (substância cinzenta).
“Nós temos um conjunto de núcleos na base do cérebro que se conectam e precisam de uma perfeita harmonia de sinais entre eles para gerar um comando correto para o córtex cerebral, responsável pela motricidade. Se há algum ruído ali, por disfunção genética ou química secundária, o comendo vai errado e esse paciente acaba tendo movimentos involuntários”, explica Casagrande.
Existem duas causas possíveis de distonia: a genética (distonia primária) e a associada a uma doença ou uso de medicamento (distonia secundária). Além disso, existem dois tipos do transtorno:
- Distonias focais e segmentares: afetam só uma parte do corpo e costumam surgir após os 20 a 30 anos de idade. Exemplos: blefarospasmo (que afeta as pálpebras), distonia cervical (pescoço), distonia espasmódica (cordas vocais), distonias ocupacionais (relacionadas a tarefas específicas) e doença de Meige (piscar involuntário dos olhos com estalos da mandíbula);
- Distonias generalizadas: afetam o tronco e mais duas partes diferentes do corpo, sendo frequentemente de origem genética.
Desconhecimento médico dificulta diagnóstico
A demora para obter um diagnóstico preciso não é algo que ocorreu apenas com Nilde. De uma forma geral, a jornada do paciente com distonia costuma ser longa e árdua, segundo Casagrande. Um dos principais motivos para isso é a desinformação dos próprios médicos.
“Eu, como neurologista especializada em distúrbio de movimento e com uma grande vivência de estudos na distonia em si, percebo isso dentro da própria neurologia. Esse é um assunto que poucos na área conhecem”, afirma. “A população que não tem acesso a um especialista é muito julgada e tem o diagnóstico errado de que é um problema ortopédico ou psicológico. Muitos são julgados como pacientes psiquiátricos, como se aquela doença fosse inventada”, completa.
O diagnóstico é feito através da análise médica dos sintomas e exames de imagem, como ressonância magnética ou tomografia computadorizada, que podem identificar a causa do distúrbio. A eletromiografia, que avalia a atividade elétrica dos músculos e nervos, também pode confirmar o diagnóstico.
“A experiência do profissional e uma escuta atenta fazem toda a diferença. Também precisamos ampliar o conhecimento sobre a distonia, tanto entre médicos quanto na população”, destaca a neurologista.
Tratamento adequado traz qualidade de vida
Enquanto estava recebendo o tratamento errado para sua condição, Nilde sentiu seus sintomas piorarem e, aos poucos, foi perdendo o controle e os movimentos do corpo.
“Perdi o movimento do pescoço para o lado direito. A sensação era de que o meu corpo não me obedecia mais”, conta. “Eu perdi 87% da mobilidade corporal e cheguei a ficar de cadeira de rodas, precisando de uma enfermeira 24 horas. Tomava água de canudinho e a comida era só papa”, relembra.
Em algumas das internações, as dores eram tão intensas que precisou de morfina. “Era a única forma de suportar. E, fora a medicação, precisava ficar constantemente com o pescoço encostado no ombro, pois era a posição mais confortável”, relata.
Após ser encaminhada para um especialista e realizar o exame de eletromiografia, Nilde foi diagnosticada com distonia cervical. O momento trouxe alívio. “Foi a primeira vez que me senti ouvida e soube o que realmente estava acontecendo comigo”, conta.
Hoje, com 54 anos, Nilde recebe o tratamento adequado para sua condição, feito com toxina botulínica e uso de medicamentos específicos. Além disso, ela passou por uma cirurgia para colocação de implante de estimulação cerebral profunda (ou DBS, da sigla em inglês para Deep Brain Stimulation).
“Antes da cirurgia, eu tomava cerca de 28 medicamentos. Agora eu tomo só quatro”, conta. “Mas mesmo com DBS, a toxina botulínica é muito importante”, avalia.
A toxina botulínica atua relaxando a musculatura do paciente com distonia e aliviando a dor, garantindo mais funcionalidade, segundo Casagrande. “Ela é um grande divisor de águas para o tratamento desses pacientes”, afirma a especialista.
Outras opções de tratamento incluem a reabilitação com fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional, a depender de cada caso.
Rede de apoio também é importante para saúde mental
Depois de tudo o que passou até conseguir a confirmação do seu diagnóstico, Nilde sentiu a necessidade de levar conhecimento para outros pacientes e profissionais de saúde, além de cobrar políticas públicas em prol dos direitos de pessoas com distonia.
Foi com esse objetivo que ela criou o Instituto Distonia Saúde, em 2018. “Nós damos voz aos pacientes com eventos para que a sociedade e os próprios médicos, fisioterapeutas, psicólogos e neuropsiquiatras para eles entenderem que a distonia é, sim, uma doença rara, já que tem um diagnóstico difícil e demorado”, afirma.
O Instituto, além de oferecer rede de apoio para pacientes com distonia ou que estão investigando a causa dos seus sintomas, também é uma forma de conscientização acerca da doença e de visibilidade para consultas públicas e outras discussões sobre o assunto.
Uma delas, por exemplo, é o Projeto de Lei n.º 4521/24, de autoria da deputada Silvia Waiãpi (PL-AP), que define a distonia como deficiência, assegurando aos pacientes com o distúrbio todos os direitos previstos no Estatuto da Pessoa com Deficiência. Atualmente, a PL está tramitando na Câmara dos Deputados. A iniciativa deste projeto é do @vozesdadistonia.
“Apesar de o Ministério da Saúde dizer que somos 65 mil brasileiros com distonia, nós não somos reconhecidos o suficiente para conseguirmos nossos direitos. É uma luta grande”, finaliza.